Muito se fala e se categoriza – especialmente nos espaços virtuais dedicados ao Caminho de Santiago – sobre o que é ser peregrino e se alguns profanam, degeneram ou até mesmo aniquilam o espírito jacobino. Também aflora certa nostalgia sobre como era o caminho antigamente, sem o conforto, a superlotação ou a exploração turística que hoje se vê.
Desde 2013 acompanho mais de perto esse movimento e posso afirmar que a massificação da peregrinação a Santiago de Compostela, especialmente do Caminho Francês, atrai cada vez mais “todo tipo de gente”.
Após o renascimento da peregrinação na década de 1980 os Caminhos de Santiago foram sendo povoados, pouco a pouco, por pessoas com as mais diversas condutas e razões para estar lá.
Mas é preciso ter em mente que o Caminho sempre esteve aberto a “todo tipo de gente”: ao inexperiente, ao turista, ao que desconhece o que é o Caminho de Santiago, ao aventureiro e até mesmo ao veterano, que apesar de já haver trilhado esta rota uma ou mais vezes, ainda não desenvolveu a capacidade de colocar-se no lugar daqueles que, por diferentes e desconhecidas razões, não fazem a peregrinação da mesma maneira que ele.
Sim, o Caminho mudou e muito... O mundo também! Mas deixemos de romantizar o passado, uma vez que desde tempos imemoriais a Rota Jacobina albergou e nutriu, além de fiéis peregrinos, interesses humanos dos mais variados.
"A porta se abre para todos, doentes e saudáveis; não apenas para os católicos, mas até mesmo para os pagãos, judeus, hereges, ociosos e vaidosos; e mais brevemente para os bons e profanos”.
Poema do século XIII
Uma peregrinação é o tipo de experiência que só se entende passando por ela, ou seja, se alguém quer realmente saber o que é uma peregrinação deveria mergulhar em uma. Este aspecto inexplicável da experiência vem da sua forte subjetividade.
Originária do Latim per agri, “pelos campos”, a palavra peregrinação transmite a ideia de longos e árduos trajetos.
Do ponto de vista religioso, a peregrinação é uma viagem, motivada pela fé, a um lugar considerado santo para cumprir uma promessa, para alcançar ou agradecer uma graça, como castigo autoimposto para obtenção de perdão ou qualquer outro motivo que se relacione com a busca do sagrado. Neste sentido, o que caracteriza o peregrino é a devoção religiosa em uma entidade sagrada que tem o poder de proporcionar a realização de seu desejo.
Nas perspectivas antropológica e sociológica, o ato de peregrinar pode ser descrito como uma viagem de carácter pessoal, espontânea e voluntária, na qual o sujeito se desloca pelo espaço geográfico ao mesmo tempo em que o faz por seu espaço interno, o que resulta na sacralização simultânea do lugar e do indivíduo.
O sociólogo e filósofo polonês Zymunt Bauman trata “o turista” e “o peregrino” como metáforas opostas. Para ele o turista é a metáfora de um descontextualizado cultural-religioso, um aventureiro e curioso efêmero em busca de novas sensações e prazeres ocasionais. É um consumidor, para o qual até mesmo uma peregrinação é um ato de consumo. Distraído apenas com o que lhe é externo, a paisagem natural, histórica ou cultural, bem como a estética religiosa, são o fim último de sua viagem.
Já o peregrino, segue em busca de valores profundos que dão um sentido maior à viagem. A peregrinação é mais que o deslocamento físico, é um movimento interno, uma imersão, um ato de reflexão íntima. Voltado para dentro de si, o peregrino extrapola o plano material, entra em contato com o transcendente, e dá início a uma jornada de transformação interior.
Nesta acepção, a peregrinação pode ser vista como qualquer viagem cujo destino seja um lugar – ainda que profano – reconhecido por seu grande valor por quem o faz. A questão chave não se restringe ao ato de caminhar ou de executar um trajeto com uma quilometragem definida, mas de ser um deslocamento motivado “por” ou “para algo” que possa transformá-lo.
"A Verdadeira Peregrinação muda as vidas, não importa se estamos a meio do caminho mundo afora, ou ainda nos fundos de casa. Não importa se você está numa exaustiva peregrinação de mil quilômetros a pé, Europa adentro, até um famoso Santuário, realizando um sonho, muitas vezes adiado ou dando o primeiro passo, na longa jornada espiritual rumo ao projeto criativo; seja como for; esta jornada está na iminência de transformá-lo!".
Phil Cousineau, a Arte da Peregrinação.
Portanto, o que distingue o peregrino do turista, não é o destino nem a forma como é feita a rota, mas a capacidade do próprio sujeito de relacionar a experiência vivida com um propósito maior que não apenas a busca por prazer.
A peregrinação tem, assim, um significado e um valor conferidos pela própria pessoa que a realiza. Quando há compreensão desse propósito, a conexão com aquilo que se busca é estabelecida e o peregrino se entrega livremente aos sentimentos, vivências, ensinamentos e transformações que o caminho lhe apresentar.
A variedade de religiões, crenças, práticas, rituais e a sutileza dos significados atribuídos a cada um destes elementos não nos permite conhecer o verdadeiro propósito que cada indivíduo confere à sua própria experiência.
Como disse o montanhista russo Anatoli Boukreev: “Montanhas não são estádios onde eu satisfaço a minha ambição, são catedrais onde eu pratico a minha religião... Eu vou a elas como as pessoas vão aos templos. De seus altivos píncaros eu vejo o meu passado, sonho com o futuro e, com uma acuidade incomum, eu vivo a experiência do presente momento... a minha visão clareia, minha força se renova. Nas montanhas eu celebro a criação!”.
Se por um lado nenhum de nós tem plena consciência de suas reais condições, (in)capacidades ou limitações, que dirá dos outros? Por outro, parece leviano e presunçoso, ou talvez uma projeção, categorizar e estabelecer uma hierarquia de valor com base na forma que cada pessoa encontra de estar no Caminho de Santiago.
Parece que o foco deste tema polêmico deveria estar centrado em desvendar por que algumas pessoas se incomodam tanto com o modo do outro trilhar seu próprio Caminho.
Penso que aquele que presta atenção no outro, deixa de prestar atenção em si mesmo e nas próprias escolhas, o que paradoxalmente o afasta da “metáfora do peregrino” definida por Bauman, cuja jornada é voltada para dentro de si.
Irônico, não? Parece que uma peregrinação – mesmo sem questionar de onde cada um partiu, quantos quilômetros andou, quantos quilos carrega ou onde vai dormir – é implacável em suas lições!
Uma coisa é certa, o Caminho de Santiago – como metáfora da própria vida – é uma experiência única e pessoal que não pode ser definida em um só rótulo. Ele permite rezar nas montanhas e “fazer turismo” nos templos, e entre um extremo e outro esta você, que diz como, onde e quando...
Buen Camino a todos!
MAIS SOBRE: O CAMINHO DE SANTIAGO COMO MEIO DE AUTOCONHECIMENTO
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2 thoughts on “PEREGRINO OU TURISGRINO?”
Ah se eu tivesse lido antes do meu Caminho (que fiz em abril/2023)!
Será que teria feito diferente? Talvez com menos julgamento sobre o meu próprio caminho?
Bem, adorei e agora estou compartilhando com todos os amigos (futuros/principiantes/experientes) peregrinos.
Obrigada,
Lilian, talvez sim, talvez não… Como saber? Penso que as coisas são como são, e quando chega a hora a gente aprende a lição que está pronto para aprender, seja com experiências alheias ou com as nossas próprias vivências. O importante é seguir em frente, atenta e forte! Ultreia (vamos mais longe / vamos em frente) et Suseia (e vamos mais alto / e vamos além)! Buen Camino, sempre…